Um guerreiro visionário, destemido e inteligente. Ninguém nega as
virtudes de Lampião. Agora pesquisadores questionam o verdadeiro papel
histórico de Virgulino Ferreira
por Lira Neto

Eles faziam do assassinato um ritual macabro. O longo punhal, de até 80
centímetros de comprimento, era enfiado com um golpe certeiro na base da
clavícula – a popular “saboneteira” – da vítima. A lâmina pontiaguda
cortava a carne, seccionava artérias, perfurava o pulmão, trespassava o
coração e, ao ser retirada, produzia um esguicho espetaculoso de sangue.
Era um policial ou um delator a menos na caatinga – e um morto a mais
na contabilidade do cangaço. Quando não matavam, faziam questão de
ferir, de mutilar, de deixar cicatrizes visíveis, para que as marcas da
violência servissem de exemplo. Desenhavam a faca feridas profundas em
forma de cruz na testa de homens, desfiguravam o rosto de mulheres com
ferro quente de marcar o gado.
Exatos 70 anos após a morte do principal líder do cangaço, Virgulino
Ferreira da Silva, o Lampião, a aura de heroísmo que durante algum tempo
tentou-se atribuir aos cangaceiros cede terreno para uma interpretação
menos idealizada do fenômeno. Uma série de livros, teses e dissertações
acadêmicas lançados nos últimos anos defende que não faz sentido cultuar
o mito de um Lampião idealista, um revolucionário primitivo, insurgente
contra a opressão do latifúndio e a injustiça do sertão nordestino.
Virgulino não seria um justiceiro romântico, um Robin Hood da caatinga,
mas um criminoso cruel e sanguinário, aliado de coronéis e grandes
proprietários de terra. Historiadores, antropólogos e cientistas sociais
contemporâneos chegam à conclusão nada confortável para a memória do
cangaço: no Brasil rural da primeira metade do século 20, a ação de
bandos como o de Lampião desempenhou um papel equivalente ao dos
traficantes de drogas que hoje seqüestram, matam e corrompem nas grandes
metrópoles do país.
Cangaceiros e traficantes
Foram os cangaceiros que introduziram o seqüestro em larga escala no
Brasil. Faziam reféns em troca de dinheiro para financiar novos crimes.
Caso não recebessem o resgate, torturavam e matavam as vítimas, a tiro
ou punhaladas. A extorsão era outra fonte de renda. Mandavam cartas, nas
quais exigiam quantias astronômicas para não invadir cidades, atear
fogo em casas e derramar sangue inocente. Ofereciam salvo-condutos, com
os quais garantiam proteção a quem lhes desse abrigo e cobertura, os
chamados coiteiros. Sempre foram implacáveis com quem atravessava seu
caminho: estupravam, castravam, aterrorizavam. Corrompiam oficiais
militares e autoridades civis, de quem recebiam armas e munição. Um
arsenal bélico sempre mais moderno e com maior poder de fogo que aquele
utilizado pelas tropas que os combatiam.
“A violência é mais perversa e explícita onde está o maior contingente
de população pobre e excluída. Antes o banditismo se dava no campo; hoje
o crime organizado é mais evidente na periferia dos centros urbanos”,
afirma a antropóloga Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, professora da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora do livro A Derradeira
Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão. A professora aponta
semelhanças entre os métodos dos cangaceiros e dos traficantes: “A
maioria dos moradores das favelas de hoje não é composta por marginais.
No sertão, os cangaceiros também eram minoria. Mas, nos dois casos, a
população honesta e trabalhadora se vê submetida ao regime de terror
imposto pelos bandidos, que ditam as regras e vivem à custa do medo
coletivo”.
Além do medo, os cangaceiros exerciam fascínio entre os sertanejos.
Entrar para o cangaço representava, para um jovem da caatinga, ascensão
social. Significava o ingresso em uma comunidade de homens que se
gabavam de sua audácia e coragem, indivíduos que trocavam a modorra da
vida camponesa por um cotidiano repleto de aventuras e perigos. Era uma
via de acesso ao dinheiro rápido e sujo de sangue, conquistado a ferro e
a fogo. “São evidentes as correlações de procedimentos entre
cangaceiros de ontem e traficantes de hoje. A rigor, são velhos
professores e modernos discípulos”, afirma o pesquisador do tema
Melquíades Pinto Paiva, autor de Ecologia do Cangaço e membro do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Homem e lenda
Virgulino Ferreira da Silva reinou na caatinga entre 1920 e 1938. A
origem do cangaço, porém, perde-se no tempo. Muito antes dele, desde o
século 18, já existiam bandos armados agindo no sertão, particularmente
na área onde vingou o ciclo do gado no Nordeste, território onde
campeava a violência, a lei dos coronéis, a miséria e a seca. A palavra
cangaço, segundo a maioria dos autores, derivou de “canga”, peça de
madeira colocada sobre o pescoço dos bois de carga. Assim como o gado,
os bandoleiros carregavam os pertences nos ombros.
Um dos precursores do cangaço foi o lendário José Gomes, o endiabrado
Cabeleira, que aterrorizou as terras pernambucanas por volta de 1775.
Outro que marcou época foi o potiguar Jesuíno Alves de Melo Calado, o
Jesuíno Brilhante (1844-1879), famoso por distribuir entre os pobres os
alimentos que saqueava dos comboios do governo. Mas o primeiro a merecer
o título de Rei do Cangaço, pela ousadia de suas ações, foi o
pernambucano Antônio Silvino (1875-1944), o Rifle de Ouro. Entre suas
façanhas, arrancou os trilhos, perseguiu engenheiros e seqüestrou
funcionários da Great Western, empresa inglesa que construía ferrovias
no interior da Paraíba.
Lampião sempre afirmou que entrou na vida de bandido para vingar o
assassinato do pai. José Ferreira, condutor de animais de carga e
pequeno fazendeiro em Serra Talhada (PE), foi morto em 1920 pelo
sargento de polícia José Lucena, após uma série de hostilidades entre a
família Ferreira e o vizinho José Saturnino. No sertão daquele tempo, a
vingança e a honra ofendida caminhavam lado a lado. Fazer justiça com as
próprias mãos era considerado legítimo e a ausência de vingança era
entendida como sintoma de frouxidão moral. “Na minha terra,/ o
cangaceiro é leal e valente:/ jura que vai matar e mata”, diz o poema
“Terra Bárbara”, do cearense Jáder de Carvalho (1901-1985).
No mesmo ano de 1920, Virgulino Ferreira entrou para o grupo de outro
cangaceiro célebre, Sebastião Pereira e Silva, o Sinhô Pereira – segundo
alguns autores, quem o apelidou de Lampião. Como tudo na biografia do
pernambucano, é controverso o motivo do codinome. Há quem diga que o
batismo se deveu ao fato de ele manejar o rifle com tanta rapidez e
destreza que os tiros sucessivos iluminavam a noite. O olho direito,
cego por decorrência de um glaucoma, agravado por um acidente com um
espinho da caatinga, não lhe prejudicou a pontaria. Outros acreditam na
versão atribuída a Sinhô Pereira, segundo a qual Virgulino teria usado o
clarão de um disparo para encontrar um cigarro que um colega havia
deixado cair no chão.
O cangaço não tinha um líder de destaque desde 1914, quando Antônio
Silvino